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terça-feira, abril 04, 2006

30 anos sem rupturas

Comentario>>>Palavras de quem sabe o que diz.


30 anos sem rupturas
José Medeiros Ferreira jmedeirosf@clix.pt
Professor universitário
A Constituição elaborada pela Assembleia Constituinte faz agora 30 anos. Surpreendentemente nenhum órgão de soberania julgou oportuno assinalar esse aniversário redondo. Distracção, fastio, saturação das agendas políticas com temas momentosos e inadiáveis, percepção difusa de haver quem a queira modificar na sua essência? Tudo é possível, e há várias maneiras de plagiar Alberto João Jardim… Não tenho o fetiche da Constituição aprovada em 2 de Abril de 1976. Embora tenha sido deputado constituinte entre Junho e Setembro de 1975, cedo discordei de uma concepção hiperprogramática, embora tenha avisado os radicais revolucionários da altura de que "contra todas as aparências é bem possível que, deste processo revolucionário, venha a ser a Constituição elaborada por esta Assembleia o testemunho mais perdurável deste ano que encobre o século" (Diário da Assembleia Constituinte n.º 26, sessão de 5 de Agosto de 1975, p. 650).

Com efeito, a Constituição de Abril de 1976, por muitos defeitos que tivesse, serviu para erguer o regime democrático pluralista e dar-lhe um conteúdo social. Mas as suas imperfeições iriam enfraquecê-la. Efectivamente assim foi. Houve até uma altura em que preconizei uma primeira revisão sem limites seguida de um referendo consagrador. Tal tese, escrita no Manifesto Reformador em 1979, não teve adeptos suficientes, tendo-se seguido a teoria das revisões graduais, quase permanentes, de 1982, 1989, 1992, 1997, 2001 e 2004. Cumpriu-se assim a letra da própria Constituição quanto a revisões, mas seis em 30 anos não abonam a favor da estabilidade da coisa e degradam o valor supremo e intangível da lei fundamental. Bem sei que algumas revisões se deveram à necessidade de acolher na ordem interna a própria instabilidade tratadista da União Europeia, com os seus consecutivos tratados de Maastricht (1992), Amesterdão (1997), Nice (2001), e que até nos precipitámos nas alterações de 2004 na perspectiva do ordenamento do futuro Tratado Constitucional. Fizemos a figura das virgens imprudentes da Bíblia, mas nos dias de hoje ninguém tomará isso como lição. À primeira oportunidade todos se precipitarão a acender as velas com que hão-de esperar o Senhor…

Refira-se, aliás, que a nossa Constituição é bem mais escorreita do ponto de vista político-jurídico do que o emaranhado tratadístico da União Europeia.

Hoje não há em Portugal um partido constitucionalista como houve no século XIX, mesmo na minguada versão cartista. Vivemos como se este Estado estivesse em vias de extinção e fosse nosso dever acompanhá-lo à sua estreita morada sem comoção nem previsão. Assistimos ao seu retraimento territorial com menos sentido estratégico do que o que o levou ao ermamento medieval.

Ora quando o Estado se retrai nas suas funções públicas, de certa maneira está a rever, no terreno, a actual Constituição. Pois ao retirar escolas, maternidades, centros de saúde, estações de correio, quartéis, esquadras, por muito racional e económico que tudo isto possa ser, é o cidadão dessas localidades que se vê privado de múltiplos serviços públicos. Em muitos sítios o Estado só aparece na época dos impostos e no mais espaçado período eleitoral. A retirada de serviços públicos e a sua concentração nos grandes meios populacionais podem resultar na tendência para tornar Portugal numa república de Cidades-Estado, melhor dizendo, de áreas metropolitanas, mas sem a lógica de um verdadeiro Estado nacional, e certamente sem a largueza e a extensão de funções atribuídas pela Constituição.

Esta é uma consequência fantástica da aplicação do Pacto de Estabilidade. Paulatinamente, este reduz a capacidade do Estado para garantir o articulado constitucional perante a complacência dos poderes constituídos, e sem nenhuma comoção política ou social que leve à necessidade de rupturas. Basta aplicar o catálogo das medidas que mais ninguém ousa para reduzir o défice… Qual será o país membro da UE que ficará primeiro sem Estado digno desse nome? Paradoxalmente, nesta passagem pelo Sinai, a Constituição de 1976 faz figura de bezerro de ouro e o Pacto de Estabilidade de tábua da lei sem Moisés por perto…

O facto de os portugueses terem vivido 30 anos neste regime democrático constitucional criou um ambiente de confiança na estabilidade das instituições que é positivo e serve de alicerce à comunidade política e até social. Por isso mesmo é deveras estranho que ninguém com responsabilidades nos órgãos de soberania tenha chamado a si as celebrações do 30.º aniversário da Constituição.

30 anos sem rupturas